Psicanálise e Discurso Político: reflexões sobre subjetividade e discurso político, autoritarismo, violência, racismo e desigualdade social a partir da teoria psicanalítica
Sérgio Kehdy
Vejam que o título é muito complexo e difícil de fazer uma síntese. Tenho lido bastante e constato que a visão psicanalítica sobre política é bastante parcial e comprometida demais com as crenças arraigadas que levam sempre às mesmas explicações e visões que podem servir para uma psicanálise individual e para as singularidades, mas que estão longe de abranger o todo e a compreensão macrocósmica ou microcósmica fora do campo analítico.
Reflexões sobre a Subjetividade
As subjetividades são iguais ao número de pessoas pensantes, e em cada um dos pensantes, as subjetividades variam muito. Para mim a subjetividade de cada um é o que lhe dá vida. Todos os textos sobre o assunto afirmam isso. Vou citar apenas Ogden, que diz o seguinte: “por subjetividade estou me referindo à capacidade de ter um gradiente de graus de autopercepção que vão da auto reflexão intencional (conquista tardia) ao mais discreto e sutil senso de individualidade, pelo qual a experiência é sutilmente dotada da qualidade de que está se pensando os próprios pensamentos e sentindo-se os próprios sentimentos, em oposição ao viver-se em um estado de reatividade reflexiva… o surgimento de um sujeito no curso desta diferenciação torna possível a uma pessoa desejar.”
Todo o simbólico e toda a individualidade está diretamente ligada às subjetividades, ou seja, o que se pensa e se sente a respeito de si mesmo e dos outros é função da subjetividade. Essa subjetividade é criada no desenvolvimento emocional. A capacidade da mãe de permitir que a transicional idade ocorra, a ilusão seja vivida plenamente, a criatividade exercida sem obstáculos, vai levar a uma subjetividade, que é consciente, mas não é a mesma coisa que o consciente. Quero realçar que a subjetividade é o lugar dos segredos, dos amores não vividos e de todos os desejos que passam por filtros. Imagino que tenha total relação com a representação do self, que segundo Kohut está próximo do consciente, algo percebido e nos mostra aspectos da onipotência pessoal e das frustrações, mas ao mesmo tempo recupera a autoestima e toda a economia psíquica. Então, a subjetividade é a nossa individualidade, o que nos distingue como portadores de nossos pensamentos e sentimentos. As subjetividades são diretamente afetadas pelas situações políticas. As feridas narcísicas e as imposições de ter que se submeter trazem dores profundas e perdas permanentes.
A psicanálise, pelos menos a nossa, ligada aos ensinamentos da IPA, durante anos existiu sob o jugo de imposições que restringiam muito o psicanalista em sua prática.
Eu ainda peguei princípios rígidos. O analista precisava ter um comportamento quase estereotipado. As boas interferências eram obrigatoriamente neutras e a pessoa do psicanalista não podia ser percebida e se acreditava nisso. A busca era o mundo interno e se acreditava também que o mundo externo, a realidade não era determinante para a vida emocional. Aqui, tenho em mente a técnica que diziam kleniana, onde tudo e qualquer coisa era colocado na transferência. Esse foi o ponto que mudou na atualidade. Em função das questões políticas a neutralidade do analista passou a ser questionada e vamos aos fatos. Usarei o racismo como paradigma para isso.
Observações sobre Racismo
Partindo do magnifico livro, modelo para o estudo e a compreensão da subjetividade do negro, Pele negra, Máscaras brancas, de Fanon. É um livro que foi redescoberto e elevado à condição de paradigma para se compreender o negro e suas dificuldades e a formação mental do mesmo. Descreve desde a linguagem imposta ao negro até as patologias e a forma de se relacionarem entre si. Questiona um texto do Otávio Manoni, item por item, no qual ele aponta as características dos negros, dentre elas um masoquismo nato. Fanon desmente e afirma que toda a subjetividade do negro é causada pela colonização europeia, que colocou o negro sempre como inferior e desprezou sua cultura e o transformou em um cidadão de segunda qualidade. Toda a beleza e inteligência é branca. A busca é ser branco, os valores brancos que valem, e muitos acreditam que “podem se tornar brancos”, mas na maioria o desanimo e um profundo sentimento de baixa estima predomina. Em nosso meio e até pouco tempo, não se falava nisso, porém a psicanálise brasileira teve vários expoentes negros, assim como a psiquiatria, embora dentro do sistema denunciado por Fanon, ou seja, “conseguiram ser brancos”, entram no mundo dos brancos. A ideia central é o negro libertar de seus grilhões interno, saber-se negro e poder relacionar-se como o mundo dessa maneira, acreditando em seu valor. Aqui, a mudança do analista é obrigatória, não existe neutralidade, é fundamental ficar ao lado e no ajudar a pensar de como se pode sair de uma “perseguição constante. O negro vivi em parte sobressaltado, o que é amplamente mostrado na literatura e na imprensa. Leva “duras’’ nas ruas, é sempre o escolhido para ser identificado, é vigiado em lojas e por aí vai. O analista não está diante de fantasias ou impressões psíquicas, mas diante de fatos, e precisa levá-los em consideração, buscar um outro caminho para essas subjetividades. No Brasil tivemos e temos muitas mulheres negras que se destacaram, lutaram e ainda lutam pelo lugar do negro, inclusive na psicanálise. A primeira, que foi minha contemporânea no IPUFRJ, Neusa Santos Souza, uma baiana que escreveu um livro que hoje é muito citado, Tornar-se Negro. Quase todas filiadas à grupos lacanianos. Já me perguntei muito, por qual razão? Acho que nossas sociedades as assustavam, sem fazer qualquer juízo de valor. Jurandir Freire Costa, escrevendo o prefácio do livro citado, faz um apanhado especial da metapsicologia do psiquismo do negro e atribui ao ideal de ego branco que os negros introjetam, o que os colocam sempre em condição de inferioridade. Nesse artigo, o autor detalha esses mecanismos com grande maestria. Hoje, tem-se discutido o papel do analista: qual a postura diante de algo real do qual o paciente é vítima. Como fazer para libertar o paciente de um ideal de ego impossível estruturalmente, pois jamais será um branco?
O psicanalista diante do Poder
O poder é algo buscado sempre, mesmo por aqueles que acham que não o buscam, pois vem do narcisismo primário, quando o mundo pertence ao recém-nascido, mundo criado por ele e com o qual faz o que quiser. Vou partir do conceito de Winnicott de objeto subjetivo, quando a mãe boa permite que seu bebê exerça sua onipotência. Esse objeto é criado pelo bebê, no período de dependência absoluta, no qual ele(bebê) não tem conhecimento dessa dependência absoluta. Tudo é criado por ele e lhe pertence. Como todos sabem, se o desenvolvimento ocorre com êxito, a realidade vai se impondo e o objeto vai se tornando um objeto objetivo, que marca a diferenciação entre o eu e o não eu, assim como, o período de dependência relativa e o rumo à independência. Imagino que esse período de onipotência, onde tudo pertence ao bebê, deixa no sujeito marcas e que precisam ser revividos. Os exemplos são muitos. Impressionante como as pessoas são sensíveis às disputas de poder insignificantes. O narcisismo das pequenas diferenças, talvez esteja enquadrado aqui. Isso estou falando na vida de relação, no dia a dia. Nessas circunstâncias o analista pode desfazer esses nós, perceber a dificuldade de partilhar suas conquistas a pessoa se isola, até porque esse poder é muito singelo, mas buscado sempre e até por pessoas insuspeitas.
O que dizer dos governos autoritários e, mais ainda, dos totalitários. Como fica a psicanálise nessas situações. Lembro-me aqui do Quarto Golpe, descrito de forma brilhante por Victor Manoel Andrade, o social, o político, como é frustrante ter de se submeter a um governo não democrático, perseguidor e que cala as pessoas. Relembro uma carta da Sociedade Psicanalítica da Venezuela, por ocasião da última eleição fraudada, na qual mostra o desânimo e a perda de qualquer esperança dos cidadãos. O não ter nada a fazer senão aceitar e se conformar. Aqui, o psicanalista apolítico, alienado talvez não sofra e continue calado e procurando saídas pelas interpretações a respeito do mundo interno dos pacientes, como já aconteceu muitas vezes. Saindo da macropolítica, como trabalhar com pacientes que tiveram participação nas lutas contra esses estados de coisas, foram realmente perseguidos e até torturados. Qual seria a função do analista, que neutralidade seria possível? Não sei responder.
A questão da violência
A psicanálise brasileira tem grandes teóricos e acabam que são pouco citados, ainda mostrando um lado nosso colonizado. Volta a citar Jurandir Freire Costa, que com seu livro Violência e Psicanálise, tornou-se um paradigma para o estudo do assunto. Faz um estudo aprofundado da violência como a qualidade do movimento que impede as coisas de seguirem seu movimento natural. Explica, seguindo Bordieu e Passeron que a cultura é imposta e que as ações pedagógicas são violências simbólicas enquanto imposição, por um poder arbitrário cultural. Continua apontando que a violência da reprodução cultural é derivada de necessidades sociológicas, que são as relações de força determinada a pelos grupos dominantes. A violência é o motopropulsor da reprodução cultural. Nesse sentido as interpretações são violências. Fiz essas observações porque falar de violência e psicanálise passa por esses pontos que são muito caros aos analistas franceses.
Quero falar aqui dos discursos políticos violentos, que destroem o adversário e caem na intolerância absoluta, ou seja, nada de positivo é visto ou apreciado no outro. A violência a que as pessoas estão sujeitas e as ameaçam em sua integridade no dia a dia. Como ficam as pessoas após terem suas casas assaltadas, sendo vítimas de ameaça com armas e situações nas quais suas vidas são invadidas e seu psiquismo sofre uma ruptura. A psiquiatria chega a descrever TEPT, causado diretamente pelos traumas. Como não levar em conta essas realidades em uma análise. As violências sofridas e que determinam muito a vida das pessoas precisam ser tratadas como realidade e exigem cuidados especiais. A violência contra a mulher é outro fato que nos mobiliza, têm falado muito sobre isso, temos a COWAP da IPA, setor importante e que no Brasil é coordenado por Rosa Lang, de nossa sociedade, extremamente atuante, onde os temas são abordados. Lembro que recentemente discutiu-se a violência obstétrica, coisa que me incomodava há mais de cinquenta anos, quando fui fazer um estágio em uma maternidade e ouvi o médico que fazia o parto se dirigir à parturiente aos gritos e dizendo, “faça força com se estivesse ca…”, “na hora de fazer não sentiu dor, agora reclama…”, fiquei impressionado de saber que com todo o progresso, isso ainda ocorre, a mulher é agredida e violentada em um momento crucial de sua vida. Fora isso a mulher corre riscos grandes, como lemos todos os dias nos jornais.
A questão LGBTQIA+ é outro ponto importante para os analistas atuais. Acreditava-se que eram pessoas com transtornos, “doentes” e com as quais pouco ou nada se conseguia. Até os mais ortodoxos psicanalistas não acreditavam que a psicanálise pudesse fazer algum efeito e se dizia com frequência que o máximo que se conseguiria é que a pessoa tivesse dignidade, ou seja, o se assumir de forma mais plena era “pouco digno”, o mostrar seus desejos até hoje causa mal-estar em muitas pessoas. As nossas sociedades não aceitavam pessoas homossexuais em seus quadros, alegavam que “teriam pontos cegos” que poderiam ameaçar as análises e que suas ligações eram com objetos parciais. Quantas injustiças foram cometidas. Não sei precisar quando isso mudou e arejou nossos quadros. Hoje temos transexuais exercendo a psicanálise, não na IPA, e não sei se por não terem interesse ou por não serem aceitos. A orientação que temos é de dar ao candidato os mesmos parâmetros de todos os outros.
Breve conceituação do Preconceito (extraído do livro Pre Conceito- Uma história de Leandro Karnal e Luiz Estevam)
‘pré-conceito’ = um conceito formado antes do conhecimento da questão.
É formado antes de uma experiência real, a partir de uma generalização. Nasce sem que necessite de dados objetivos. Vem sempre de alguém com limitação intelectual conjectural—porque não conhece—e deduz sobre o vazio.
O 2º elemento é a generalização. Parte-se de um exemplo como tipo geral para descrever uma região, uma orientação sexual, uma raça, e por aí vai… “a generalização seduz quem se sente pouco a vontade com o real e busca um nicho onde descansar sua angústia.”
O 3º elemento é a criação de identidade. Este é um dos mais perigosos, porque provoca violência contra o outro identificado como diferente, o não coletivo do grupo que determinou essa identidade. Associações racistas, as torcidas organizadas, organizações xenofóbicas.
Criação do “bode expiatório”. Inventam um grupo ou qualquer outra coisa que possam ser a fonte do mal e do fracasso. Esse seria o elemento psicologizante do preconceito, o efeito catártico e que tranquiliza as pessoas do preconceito. Todo o bem deriva de mim, e o mal do outro.
A psicanálise e suas mudanças
Como ficamos diante disso tudo? Nossa ciência, mais uma vez precisa lidar com a singularidade, cada caso é um caso, mas sabemos que as velhas certezas não funcionam mais.
Então, precisa-se ter muito cuidado com as normas estabelecidas como ideais. Não podemos pensar em “normalizar” os pacientes.
Canavês & Gondar em seu artigo sobre pautas identitárias nos mostram que as mesmas (pautas identitárias) operam de forma a buscar a “criação de zonas seguras para grupos marginalizados, espaços em que esses sujeitos estariam protegidos das forças violentas de que são alvos…essa busca chega ao campo da clínica com o objetivo de que não sejam reproduzidas em nossa escuta as normas de orientação sexual e identidade de gênero…para que preconceito de gênero não seja tomado apenas como fantasia que eles produzem e para que a nossa prática clínica não reforce normas opressivas.” As autoras contam que isso se tem popularizado por meio de propostas de uma clínica segura e inclusiva (Psy Safe). Importante é que, segundo as autoras, esses profissionais dizem aderir à proposta de uma “escuta politicamente não neutra”, ou seja, uma escuta que buscaria evitar a reprodução do regime de normas sociais tomadas como hegemônicas, como as normas de orientação sexual.
Acho difícil para um psicanalista conciliar tudo isso e sacrificar sua criatividade e suas associações livres, em nome dessa nova norma, qualquer coisa dita poder se considerada uma violência. No caso do negro é mais fácil porque sabemos e acreditamos que suas subjetividades foram alteradas pela colonização. Eles não conseguem ver beleza neles mesmos, então temos recursos de holding para segurar essa sensação de desamparo e de descrença e, talvez, podermos mudar o rumo. Faze-los acreditar que podem ser eles mesmos, e sair dessa situação que a única coisa que fica é o “não ser branco”. Reforçar a ideia de que seus dramas e tragédias são os mesmos de todo mundo. Vi um posto muito interessante, o retrato de uma menina negra, linda mesmo, e embaixo escrito: “espero que alguém diga que você é bonita antes de dizer que você é negra.” Cabe a cada uma de nós, analistas dispostos a enfrentar o contemporâneo, descobrir como fazer isso.
No caso dos gêneros, acho mais complicado, até porque é possível que não tenhamos tanta convicção como temos nos outros casos. Eu, não tenho experiência de atender pessoas com essas características, mas tenho pensado, ouvido depoimentos e uma das coisas que enfatizam muito é a questão de terem suas subjetividades respeitadas, pareceu-me que toda a energia é gasta nisso e sobra pouco para cuidar do resto de suas vidas. Em artigo publicado na RBP um analista norte americano nos mostra que chamar um trans pelo nome antigo é uma verdadeira agressão, pois significa jogar no chão sua subjetividade construída com todas suas dificuldades. Imagino que analisar uma pessoa com essa subjetividade exigirá do analista paciência, tolerar muito mais o não saber, elaborar seus próprios preconceitos e deixar as situações aparecerem e jamais parecer crítico ou alheio as guerras internas do paciente, mas também tentar tirá-los das histórias únicas.
Imagino que as questões feministas e relativas as inúmeras violências sofridas pelas pessoas já temos experiência e caí sempre na singularidade de cada caso.
Cada vez mais precisamos fugir de colocações que possam soar como violentas e que são frutos dos nossos inconscientes.
Amadurecer sempre deve ser a meta de todo psicanalista. Ter a convicção de que não sabemos e trabalhar para que nos livremos o máximo dos julgamentos morais e opiniões.
A definição destrói.
Além disso nada é definitivo neste mundo. (Bob Dylan)
Nova Lima, 08 de agosto de 2025.